Hoje, celebramos o centenário de nascimento do violonista Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. Tanto pela sua admirável obra de compositor como de seu talento de executante, influenciou a quase totalidade dos violonistas que chegaram depois.
A história de Garoto — não só o que dominava o violão, o banjo, o bandolim, o cavaquinho, o violão tenor, mas o músico completo — começou cedo e ainda muito jovem já fazia sucesso como o "Garoto do Banjo". Hoje ele é consagrado pela sua genialidade e sua obra memorável. E nesta data, nossos aplausos são todos para você, Garoto.
AS CORDAS MÁGICAS DE GAROTO
Por: Raphael Vidigal*
Tocam-vos levemente,
Qual os dedos do artista
nas cordas santas
Sem destino, como a criança” Hölderlin
Prodígio já nasceu chorando. Não queria aquele nome. A mãe o chamou Aníbal. Os amigos o batizaram Moleque do Banjo. Seria sempre Garoto, aonde quer que fosse, arrastava suas cordas mágicas. Diziam serem encantadas, aquelas mãos. Saiu de São Paulo foi para o Rio de Janeiro. Depois, Estados Unidos. Voltou à cidade que o acolheu, descansou o coração, nos preparativos de mais uma viagem. Levou consigo as cordas. Deixou delas, uma pequena amostra, suficiente para alentar lembranças e saudades recolhidas.
Amoroso (choro, 1942) – Garoto
O pai de Garoto tocava guitarra portuguesa e violão. Do irmão Batista, também músico, o menino que já ensaiava num instrumento improvisado de pau e corda, ganhou o primeiro banjo. Desde cedo, integrou o “Regional dos Irmãos Armani”, com 11 anos, depois “Conjunto dos Sócios”, “Chorões Sertanejos”, “Conjunto Regional”, em substituição a Zé Carioca, “Rádio Educadora Paulista”, entre outros. Convites nunca lhe faltaram. Ao se apresentar com o violonista D. Montezano, conhecido como Serelepe, ao diretor artístico da Parlophon, foi imediatamente convidado a gravar um disco, contendo os maxixes “Bichinho de Queijo” e “Driblando”, de sua autoria, envergando o singular banjo. Mais tarde, iria unir suas cordas às de Zezinho, conhecido Aimoré, em infindáveis serenatas no bairro da Luz, e depois num conjunto de choro. E mais tarde ainda, iria compor “Amoroso”, em 1942, com a completude que lhe era específica.
Perambulando com suas cordas vibrantes, Garoto conheceu Petit, com quem formou ao lado de Aimoré, trio que se apresentava no salão nobre de um edifício em São Paulo, o Martinelli. Depois viajou com o último para o Paraná, a bordo da “Quarta Caravana Artística”, Porto Alegre, no “Cassino Farroupilha” e Buenos Aires, na Argentina, acompanhando Carlos Gardel em algumas músicas. No retorno a São Paulo, tomou posse de um violão-tenor para se apresentar com o seresteiro Silvio Caldas e o velho companheiro de viagem. Ainda na década de 30, gravou choros e valsas pela Columbia, demonstrando sua habilidade também na guitarra havaiana. Estreou na Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, e se encontrou com Carmen Miranda, Alvarenga e Ranchinho, Ary Barroso, Jararaca e Zé Formiga, Dorival Caymmi e Laurindo de Almeida, dando iniciativa, com este, à “Dupla do Ritmo Sincopado” e grupo “Cordas Quentes”. Isso após participar do “Conjunto Regional” da Rádio Cruzeiro do Sul em sua terra natal, desfazer a dupla com Aimoré e se casar, fixando-se na capital fluminense. Ao menos por algum tempo. Sua rotina “Desvairada” bem correspondia ao ritmo do choro de 1949.
Incrivelmente, apesar do talento destacado, Garoto chegou a ficar algum tempo desempregado, com o fechamento da Rádio Cosmos. No entanto, a maior oportunidade da sua vida ainda estava por vir, quando recebeu uma carta: “Querido Garoto, espero que você tenha gostado da idéia de vir para cá, e aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só você estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos para que você venha; eu e os rapazes.” A remetente era Carmen Miranda, que o chamava para substituir Ivo Astolfi no “Bando da Lua”. Resultado: rumou para os Estados Unidos, onde permaneceu por oitos meses na companhia da Pequena Notável, fazendo parte do conjunto e chamando a atenção naturalmente, pelo brilho de suas cordas. Teve a honradez de conhecer diversas cidades, fazendo o que melhor sabia e gostava, atuar em filmes, e tocar até para o presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, na Casa Branca, tudo isso nos idos de 1939 e 1940. Tornou-se o “homem dos dedos de ouro”, nas palavras do organista Jesse Crawford. Já de volta ao Rio de Janeiro, compôs “Vamos acabar com o baile!”, com José Brandão, em 1952. Baile foi o que realizou em sua passagem em terras estrangeiras, mantendo boquiabertos até os mais exigentes.
Finalmente fixado no Rio de Janeiro, criou o conjunto “Garoto e seus Garotos”, com Valdemar Reis, Poli e Almeida no violão, mais Russo do Pandeiro. Ao fim deste projeto, se encaminhou para a Rádio Nacional, se deparando por lá com a pianista Carolina Cardoso de Meneses, com quem gravou discos em dupla. Formaria também dupla com José Meneses, alternando guitarra, violão, violão-tenor e cavaquinho, durante os programas radiofônicos “Nada além de dois minutos”, “Ao som da viola” e “Um milhão de melodias”. Ainda por cima trabalhava na Orquestra da Rádio Nacional, regida por Radmés Gnatalli, de quem foi colega e legou eterna amizade. Mas seria em trio que conseguiria o maior sucesso da carreira, quando, em 1953, compôs o dobrado “São Paulo Quatrocentão”, para os festejos do aniversário da cidade natal, em companhia de Chiquinho do Acordeom e letra de Avaré. A composição virou verdadeira febre, com recordes de vendagem de disco (algo em torno de 700 cópias) e interpretação da inclusive cantora na época, Hebe Camargo, reconhecida posteriormente como apresentadora de TV.
Duas contas (samba-canção, 1953) – Garoto
Garoto estreou como letrista ao compor o samba-canção “Duas contas”, em 1953, antecipando a bossa nova. No mesmo ano, embeveceu os presentes com a interpretação solo do Concerto nº 2 para Violão e Orquestra, dedicado a ele por Radamés Gnatalli, em pleno Teatro Municipal do Rio. Mas a história que o levara a se atrever no mundo da escrita começara um ano antes, quando, a convite do diretor musical do programa da Rádio Nacional, “Música em Surdina”, Paulo Tapajós, topou se alinhar a Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom naquele que ficaria conhecido como o “Trio Surdina”. Seguiram-se dois discos, e no primeiro deles vinha a música que comprovara seu atrevimento, sem rimas, levando o próprio autor dos versos à insegurança. Paulo Tapajós, que o incentivara, estava certo, a música correspondia a seu talento já comprovado como instrumentista, também na letra. E bastava: “teus olhos são duas contas pequeninas, qual duas pedras preciosas, que brilham mais que o luar”.
A gravação de “Gente humilde” aconteceu informalmente, quase por acaso, como presente a um amigo querido de Garoto, o professor mineiro Valter Souto. Num acetato simples, eternizou-se o momento de inspiração que recaiu divino, com a espontaneidade que acalora os corações de artistas. A cena observada passaria incólume, não tivessem aquelas mãos o poder de restringir às cordas a leveza de um sentimento inalcançado. Afinal o poeta vê a árvore e se encanta por ela, e nos encanta com sua poesia. A mesma árvore que vemos todos os dias. Com auxílio de Vinicius e Moraes e Chico Buarque, a canção abraçou em 1970 versos que Garoto não disse, mas zumbiu.
“Comecei a tocar sozinho, e com o falecido Pinheirinho Barreto e Aluísio Silva formamos um novo grupo. Foi quando gravamos ‘Zombando da Morte’, um samba que se tornou muito popular.” Garoto
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* Raphael Vidigal é escritor e editor do Blog Esquina Musical. Trabalhou como repórter de Cultura do jornal 'Hoje em Dia' e produtor e redator do programa ‘A Hora do Coroa’, transmitido aos domingos na Rádio Itatiaia.
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